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Intervenção militar: até onde a vista alcança?

21/02/2018

Todos nós sabemos que a segurança pública é um grande e grave problema em nosso país. Na Fiocruz, somos testemunhas cotidianas da sensação de insegurança e do risco real que ameaça nossas vidas. Por toda a cidade e no restante do estado a apreensão é a mesma. São igualmente alarmantes os casos concretos de danos e ameaças à vida. De fato, não estamos seguros. Comunidades, bairros de classe média, subúrbios e zonas mais ricas experimentam, ainda que de modo e intensidade bastante diferenciados, formas diversas de violência. A morte violenta é uma presença constante dos noticiários.

Sabemos também que a desejada erradicação da violência se arrasta de caso em caso, de crise em crise, de manchete em manchete sem solução aparente. Compelidos pelo desejo de alcançar a paz e a segurança esperada somos, muitas vezes, alvos fáceis de propostas demagógicas e ineficientes. Enxugamos gelo, batendo sempre nas mesmas teclas, reproduzindo um enredo há muito conhecido. Editoriais contundentes, discursos inflamados, linguagem dura, hipocrisia sensacionalista de telejornais. Oportunismos de propostas eleitoreiras, planos bem desenhados e infalíveis, cercos, invasões transmitidas em tempo real, apreensões espetaculares, prisões e mortes. Tudo isso envolto na cultura da violência e do autoritarismo, compondo um velho e surrado roteiro que de tempos em tempos se atualiza com a promessa que dessa vez a coisa se resolve.

O resultado é conhecido: invariavelmente a expectativa se quebra. Na tentativa de escapar dos efeitos nefastos da violência somos tentados a apoiar cegamente medidas destinadas a magicamente “resolver o problema”. De frustração em frustração, vamos sendo vítimas de oportunistas. A tentação da saída autoritária e voluntariosa é grande.

Entretanto, se não conhecemos todo o emaranhado que a questão envolve podemos, com base na experiência, recusar aquilo que já se provou injusto e ineficaz. Não resolveremos a injustiça com mais injustiça. Não resolveremos a violência com mais violência. Não resolveremos o problema com bravatas. Não podemos apoiar ou justificar a existência de um apartheid social expresso na implantação de um Estado de exceção para os moradores das comunidades. O país e todos nós merecemos uma política de segurança séria, competente, baseada no respeito à cidadania, na inteligência e articulada a outras políticas públicas.

Sabe-se da completa desestruturação do aparelho policial, sucateado e sem condições de proceder a funções efetivas e permanentes de investigação. Sabe-se da dupla jornada propiciada pela “privatização” de parcelas significativas do efetivo da Polícia Militar em programas como Lapa Legal, entre outras modalidades. Sabe-se do adoecimento e de casos de depressão e suicídio entre policiais. É preciso repensar as forças de seguranças e refundá-las na perspectiva da construção de instituições que inequivocamente passem a fazer parte da solução, atuando como instituições promotoras e defensoras dos direitos da cidadania.

O lucrativo tráfico de armas atua paralelamente ao também lucrativo tráfico de drogas. Os fatos estão aí para análise de todos. O problema não se restringe ao Rio de Janeiro. São Paulo, por exemplo, é apontado como o Estado-sede da organização criminosa mais organizada do país que, de acordo com alguns especialistas, estaria ampliando seus negócios para outras unidades da federação. É preciso questionar o que se tem feito para controlar nossas fronteiras. Onde estão as ações do governo federal para reduzir o ingresso de drogas e armas no território nacional? O que tem feito a Justiça em casos rumorosos como o do helicóptero com quase meia tonelada de cocaína? É preciso debater com seriedade a falência da política de combate às drogas. Uma política que alimenta o conflito e abre espaços para a corrupção.

O exército ocupou a Maré por um ano. Gastou-se cerca de 600 milhões com visível desgaste e constrangimento da força que foi empregada totalmente fora de suas funções. As declarações do comandante do exército não deixam dúvidas: “um dia me dei conta. Os nossos soldados atentos, preocupados – são vielas –, armados. E passando crianças, senhoras, eu pensei: estamos aqui apontando arma para a população brasileira. Nós somos uma sociedade doente. E lá ficamos 14 meses. Do dia em que saímos, uma semana depois tudo havia voltado ao que era antes. Então, temos que realmente repensar esse modelo de emprego, porque é desgastante, perigoso e inócuo”. Em outro trecho o general informa os números de vezes que se utilizaram as forças armadas no combate ao crime organizado: “nos últimos 30 anos, nós fomos empregados 115 vezes. O único estado onde não houve emprego até hoje me parece que foi São Paulo. Nós não gostamos desse tipo de emprego, não gostamos”.

Nesse momento o Rio de Janeiro encontra-se sob intervenção militar patrocinada e coordenada pelo governo federal. Novamente nos sentimos atraídos pelo desejo de viver em paz, sem medo. Novamente corremos o risco de fecharmos os olhos para a complexidade do que está em jogo. Novamente corremos o risco de fechar os olhos para as arbitrariedades que condenamos enquanto defensores de ideais de civilidade e cidadania. Novamente corremos o risco de sermos manipulados por uma mídia conservadora e por governantes sem legitimidade e sem credibilidade alguma. O apelo a soluções de força sem o amplo debate busca desqualificar a política como esfera legitima de discussão dos problemas enfrentados pela sociedade.

Nesse sentido, a diretoria da Asfoc-SN vem chamar a atenção para aspectos que acreditamos devam ser objeto de reflexão serena e criteriosa. Observa-se que as análises sobre a intervenção militar dividem opiniões e a polêmica marca os debates na mídia, nos círculos acadêmicos, nas conversas nos locais de trabalho e nas ruas. Muitas dessas análises apontam para um uso eleitoreiro por parte de governos e candidatos hoje sem respaldo popular. Apontam também para um ensaio de recrudescimento da situação política do país e da cultura da violência como reforço para as forças conservadoras que estão promovendo o desmantelamento do Estado de Bem-Estar, dos direitos sociais e da soberania nacional. Causa espanto a sugestão de utilização de mandados coletivos de busca e apreensão como formulários a serem preenchidos conforme a vontade da autoridade encarregada da segurança. Igualmente estarrecedora é a conformação de uma justiça própria para julgar militares envolvidos em casos de morte, seja de criminosos ou de inocentes. Fere a democracia e Estado de Direito. É preciso afirmar o direito à vida, à dignidade e à cidadania dos moradores das comunidades sob o cerco militar. É preciso afirmar que não queremos uma política de segurança baseada em ações espetaculares destinadas a promover a catarse coletiva. É preciso reafirmar que só obteremos paz quando esta última vier acompanhada de justiça e cidadania para todos.

Nosso Estado vem sofrendo com perda de recursos. Perdemos boa parte do investimento no setor do petróleo e da indústria naval. Assistimos a falência do serviço público promovida pela incúria. A oferta de empregos caiu drasticamente e os novos postos de trabalho, como se sabe, não oferecem condições mínimas para reduzir a situação de precariedade enfrentada por grande parte de nossa população. Reinvestir nas atividades produtivas e nas políticas públicas sociais certamente contribuiria bastante para redução do caos. É fundamental a revogação de Emenda Constitucional 95, que estabelece o corte de investimentos nas áreas da Saúde e Educação.

Procurando lançar luz na discussão, a Asfoc-SN vai promover em breve um debate com a presença de especialistas e os movimentos sociais das comunidades que são alvos dessas operações. Clique aqui para ler a nota técnica do Ministério Público em relação ao assunto. 

Diretoria Executiva Nacional da Asfoc-SN

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