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Nota de repúdio e de alerta à população

16/04/2020

A Asfoc-SN vem a público mais uma vez manifestar o seu completo desagrado com a forma irresponsável como o presidente da República vem lidando com a pandemia que ameaça a vida de todos e o futuro do país. Não bastam os péssimos exemplos, as declarações estapafúrdias ou a escolha de estratégias cruéis e desprovidas de amparo científico. Bolsonaro, além de não contribuir com absolutamente nada de positivo, atrapalha os esforços de articulação e coordenação das demais autoridades do país, procurando desestabilizar governadores, prefeitos, o Ministério da Saúde e suas instituições. Atitudes que também se contrapõem às iniciativas da sociedade civil que busca se organizar para enfrentar uma ameaça que, embora qualificada por ele de “resfriadinho”, a cada dia faz mais vítimas e demonstra quanto sofrimento e prejuízos é capaz de causar.

Nós, da Asfoc-SN, não somos defensores incondicionais do ex-ministro e muito menos participamos de suas posições políticas. Entretanto, consideramos completamente descabida uma demissão em meio ao combate à pandemia e em um momento em que ela se agudiza. Uma demissão que tem por objetivo abrir passagem para o afrouxamento do isolamento horizontal, a medida mais eficaz de que dispomos para reduzir o número de vítimas, a transmissão e o ritmo de propagação da Covid-19. Essa é, certamente, a razão principal da demissão do ministro da Saúde. É sobre esse aspecto que buscamos lançar luz. É isso que está por trás da chamada “imunização de rebanho” defendida por Bolsonaro em contraposição aos especialistas e pesquisadores da saúde pública. Consideramos inadmissível, humanamente inconcebível e temerário abrir caminho para uma patologia que, ao contrário do que se acreditava inicialmente, tem levado à morte não somente os ditos vulneráveis, mas também um número elevado de jovens, muitos deles sem quadro de comorbidades. Colocar deliberadamente em risco a população como um todo sob o falso pretexto de proteger somente os vulneráveis é, na nossa visão, um ato que atenta contra a responsabilidade e a ética pública.

As ações reprováveis do chefe do Executivo atingiram um grau incomum de falta de desprendimento e espirito público com a demissão do ministro da Saúde em meio a um quadro delicado de combate à propagação da Covid-19. Uma demissão por ele construída com fogo contínuo expresso em desautorizações explicitas às determinações do ministro e sua equipe. Uma demissão cujos motivos, o discurso oficial, apesar de procurar minimizar e não revelar, se mostra incapaz de esconder. O que vimos na coletiva concedida pelo presidente da República foi uma tentativa de explicar o inexplicável. Uma justificativa pífia e desprovida de argumentos razoáveis.  Um recuo do presidente em explicitar a polarização que ele mesmo estabeleceu de modo tão contundente em suas declarações anteriores entre proteção à vida e economia. Assistimos a um constrangedor malabarismo discursivo. Uma atitude raramente vista em países onde o bom senso orienta as ações dos governantes.

Embora distantes das posições políticas do ministro da Saúde recém-demitido, reconhecemos que o apoio popular que o ministro recebeu ao entrar em contradição com as posições e atitudes do presidente pesou na deflagração da crise no comando da Saúde. Pesou o fato de Mandetta ser - assim como ex-aliado do presidente, o médico e governador de Goiás, Ronaldo Caiado - suscetível às ponderações da ciência e do corpo técnico da saúde pública brasileira e mundial. Entrou na conta, o fato do Ministério da Saúde não aderir à nada humanitária estratégia de “imunização de rebanho” defendida por Bolsonaro como forma de manter, ao custo de milhares de vidas e em sentido oposto das posições adotadas em todo o mundo, o apoio daqueles que súbita, e desavergonhadamente, se dizem preocupados com o destino da população frente à paralisação da economia. Uma população historicamente abandonada. Uma população formada em grande parte por descendentes de contingentes escravizados que, como se sabe, foram largados à própria sorte com o fim da escravidão.

Orientado exclusivamente pelo seu instinto de sobrevivência política, Bolsonaro se agarra ao grupo mais radical e à sua dependência em relação a Donald Trump. Para ele e seu grupo de apoiadores não importam a ciência ou os apelos por considerações de ordem humanitária. Não importam as nossas vidas ou as de nossos parentes, vizinhos e conhecidos. "Alguns vão morrer. Paciência", disse o presidente mais de uma vez, enquanto afirmava que a pandemia era uma “gripezinha que não justificava a histeria” da Organização Mundial de Saúde, dos líderes mundiais, das autoridades sanitárias locais, dos governadores e prefeitos, e da população que aderiu ao isolamento voluntário. Para o presidente e seus apoiadores, somos apenas números manipulados em uma linha de argumentos falsa e dissimuladora, destinada a manter tudo como antes com cortes de direitos, ataques ao serviço público, privatizações e alinhamento automático com os EUA. Não há preocupação real com nossas vidas, com nossos empregos ou mesmo com uma economia que sirva a todos. O cálculo frio e desumano leva em consideração que existe gente demais e falta emprego e Estado para atender a todos.

Como já alertamos em notas anteriores (ver nota da Asfoc-SN publicada em 26 de março de 2020), o pressuposto da estratégia de “imunização de rebanho” é que a pessoa curada adquire imunidade e dificulta a propagação do vírus. A imunidade adquirida e a eliminação de parcelas consideráveis da população vulnerável acabariam por dificultar, ou mesmo impedir, a circulação do vírus.  A essas medidas se somariam o aparelhamento de hospitais, a produção de testes de diagnóstico e a pesquisa de vacinas e da validade de medicamentos já existentes para o combate à evolução ou prevenção dos sintomas mais graves. Fora isso, não haveria muito mais o que fazer exceto garantir a segurança pública e deixar que o vírus se propague livremente, mesmo que isso signifique a morte de parte expressiva da população. 

Uma opção metodológica de combate à pandemia abandonada pelo governo inglês e pelos EUA em face do desastre que se anunciava e que foi tristemente confirmado em cidades como Nova York. Uma opção adotada na Itália com graves consequências para a população e para a economia do país. Uma opção que não segue evidências científicas consolidadas, mas sim o desejo inconfessável de proteger a patrimônio da elite econômica e manter intocada a selvageria da concentração de renda e da exploração.

Cabe lembrar que não temos ainda conhecimento plenamente estabelecido sobre essa variação do coronavírus e sua capacidade de se adaptar. Não temos nem mesmo certeza sobre que frações populacionais não estariam realmente expostas ao risco de morte. Por outro lado, embora se divulgue que é possível obter imunização após a cura, o tema ainda é controverso e não se pode afirmar, sem margens para dúvidas, que isso corresponda à verdade. Pesquisas em curso na Coréia do Sul e na China alertam para a possibilidade de reativação do vírus em pessoas classificadas como curadas. Chamam a atenção também para a ausência de anticorpos naqueles que deveriam estar inumes após alcançarem a cura e, ainda, para o fato de que 9 entre 10 dos que não desenvolveram reação imune estarem situados em uma faixa etária abaixo dos 40 anos de idade.

É sabido também que diversas enfermidades causadas por outras variedades de coronavírus a imunidade conferida não é permanente, chegando a períodos próximos a dois anos apenas. Além disso, quanto mais o vírus se propagar, maiores serão as chances de que sofra mutações ainda mais nocivas à nossa saúde ou que ele se torne ainda mais difícil de combater. Estamos, portanto, no campo das incertezas. Incertezas que, somadas ao consentimento tácito da morte dos mais suscetíveis, não autorizam ética, ou mesmo pragmaticamente, a adoção da “imunidade de grupo ou de rebanho” como opção.

A persistência velada na estratégia de “imunização de rebanho” que Bolsonaro tenta impor e a manipulação da ansiedade e do desconhecimento popular com acenos de uma saída milagrosa como o uso indiscriminado de medicamentos como a hidroxicloroquina certamente vão cobrar um preço mais alto do que o imaginado pelo presidente e seus seguidores.

Não acreditamos, portanto, que a demissão de Mandetta leve à pacificação e a uma sintonia fina entre as os três poderes e as três esferas de governo e destes com a sociedade. O chefe do Executivo não se contenta apenas em contrariar a Organização Mundial de Saúde e o consenso internacional em defesa do isolamento, ele se move para desarticular qualquer iniciativa que contrarie sua visão de mundo ou os interesses de uma parcela expressiva da elite econômica que nossa indignação, em um momento grave como esse, reputa como retrógrada, predatória, venal e parasitária dos recursos públicos.  Uma elite desprovida de empatia ou de um projeto nacional autônomo e inclusivo. Trata-se da mesma parcela representada por aqueles que desfilam protegidos por máscara em carros de luxo, pedindo a volta do trabalho em prejuízo da vida de milhares de pessoas. Um segmento que, além de jamais ter se importado com as péssimas condições de vida da maioria de nosso povo, se serve da miséria para explorar o trabalho alheio. Uma elite contrária aos ideais da civilização que, juntamente com empresários da fé, grupos paramilitares adeptos de ideologias totalitárias e de um contingente de iludidos, compõe a sua base de apoio que, felizmente, vem se reduzindo à medida que se revela o seu despreparo, o contrassenso e a ausência de altivez que marcam suas atitudes.

Vale lembrar que, mesmo antes da chegada do coronavírus em nosso país, o governo Bolsonaro, tendo à frente o ministro da Economia, Paulo Guedes, vinha solapando as bases de sustentação da saúde pública, do bem-estar da população e de nossa soberania ao promover as reformas da Previdência e Trabalhista, precarizar o serviço público e retirar recursos de áreas estratégicas como Educação, Ciência e Tecnologia. Uma política que, em um pouco mais de um ano, levou à volta do país ao mapa da fome; a um desemprego recorde; ao aumento expressivo do número de moradores de rua; ao crescimento dos trabalhadores informais e de desalentados; a fechamentos e falências de empresas e ao aprofundamento da desindustrialização e da consequente reprimarização da economia. Testemunhamos nesse curto período: a fuga de capitais e de cérebros; a um aumento significativo do déficit da balança comercial; a queda do PIB e ao crescente isolamento político e econômico do país.

Sofremos um grave processo de destruição de grande parte de nossas defesas frente concorrência internacional, à eclosão de crises econômicas ou emergências sanitárias como a pandemia que enfrentamos nesse momento. O país percebeu o quanto é frágil uma economia que não inclui. Percebemos que a ampla maioria de nossa população se encontra abandonada à própria sorte. Nosso mercado interno se reduziu em grande parte à informalidade. Estamos caminhando a passos largos para o desemprego e empobrecimento geral da população. A classe média que ainda tem algo a perder, ao contrário do que esperava, está fortemente ameaçada.

Por essa via traçada por Paulo Guedes a economia não vai recuperar nem mesmo o baixo desempenho observado antes da eclosão da pandemia e será perdido um número incalculável de vidas. Um desastre completo que poderia ser evitado, ou pelo menos mitigado, com uma forte intervenção do Estado e a implementação de mecanismos de desconcentração e distribuição de renda. Ações que não se pode esperar de quem considerou ofertar R$ 200,00 para aqueles que nada têm pudessem “se virar”. Ações que não serão adotadas sem pressão por quem atrasa a distribuição da cota de renda mínima corrigida para R$ 600,00 ao mesmo tempo em que se mostra ágil e prestativo na liberação de recursos gigantescos para os bancos.

Nem os anéis e nem os dedos, parece ser o pensamento de grande parte da elite econômica e de segmentos conservadores e retrógrados da classe média. Identificado com essa linha de raciocínio, Bolsonaro aposta alto e irresponsavelmente em uma passagem rápida e de baixo impacto da “gripezinha” pelo país. A julgar pelo seu comportamento errático, pela sua desfaçatez e pela grande estrutura de produção e veiculação de mentiras (as chamadas fake news) de seus apoiadores, não é improvável, também, que o presidente pense ser possível manipular a opinião pública, minimizando os efeitos da pandemia.

Desse modo, como já mencionamos em outra nota, na visão desse segmento de opinião, se respeitaria a política de austeridade e não seria preciso parar a economia do país. De acordo com os que se empenham pelo relaxamento da estratégia de isolamento, passado o sacrifício a ser enfrentado, rapidamente as coisas retomariam os trilhos daquilo que chamam de normalidade: ricos e pobres poderiam voltar a ocupar os lugares que lhes foram reservados na história nacional e no projeto econômico em curso no país.

O que não está no roteiro dessa vertente de administração da crise é que Bolsonaro e seus apoiadores sonham em voltar para um mundo que não existe mais. A economia mundial está irremediavelmente comprometida e não será com políticas recessivas, como a austeridade e a destruição da estrutura estatal defendida por Paulo Guedes ou com a carteira verde e amarela recentemente aprovada na Câmara dos Deputados, que o país conseguirá ultrapassar essa crise. Uma crise sem precedentes e para a qual o arsenal neoliberal não dispõe de armas capazes de deter. Não será com a maior parte da população inadimplente e refém do credito consignado que nossa economia voltará a girar. Temos que nos unir contra a pandemia e reconhecer que precisamos, mais do que nunca fortalecer o SUS e lutar pelos direitos de uma cidadania de fato capaz de garantir dignidade para todos.

Esperamos que os ímpetos desagregadores do presidente sejam contidos e que o novo ministro, o oncologista Nelson Teich, mantenha a defesa do isolamento horizontal como já vinha fazendo antes de assumir o cargo para o qual foi convidado. Desejamos que o novo ministro seja capaz de construir as condições necessárias para que se evite, a todo o custo, a situação de escolhas trágicas abordadas por ele em um vídeo que circula nas redes. Desejamos que ele considere a obtenção de recursos para a Saúde como a alternativa a ser perseguida para que se evite tais situações.

Esperamos também que estados e municípios recebam os apoios e os recursos necessários para que continuem construindo as condições para o enfrentamento da pandemia enquanto mantêm em casa a parte da população não envolvida em atividades essenciais juntamente com aqueles considerados mais suscetíveis.

A pandemia mostrou ao mundo que o mercado não vai resolver a crise gerada pela propagação da Covid-19. Evidenciou a necessidade de sistemas públicos e gratuitos de saúde e das políticas de bem-estar social e de renda mínima. Tornou claro que somente o Estado tem capacidade de coordenação para dar combate a uma ameaça tão destrutiva e abrangente como essa. Somente ele é capaz de realizar investimentos a fundo perdido para socorrer populações e reconstruir países após a tormenta.

Há uma simplificação extremamente nociva na polarização radical entre Estado e mercado veiculada por adeptos do neoliberalismo, onde o primeiro é intrinsecamente inoperante e ineficiente e o segundo o melhor alocador de recursos e promotor do progresso social. A iniciativa privada é avessa a riscos. É o Estado que dá sustentação à estrutura econômica, garantido contratos, infraestrutura, segurança pública, investimentos e socorro nas horas de crise. É ele que tem condições de alavancar a produção de conhecimento científico e tecnológico articulados a processos de industrialização como pressupõe a estratégia de fortalecimento do chamado Complexo Econômico e Industrial da Saúde.

Defendemos que os objetivos centrais e prioritários do desenvolvimento sejam a proteção à vida e ao bem-estar da população. Acreditamos que a área da Saúde pode contribuir de forma bastante positiva para o atendimento das inadiáveis demandas sociais e para a autonomia tecnológica que tanto precisamos nesse momento. Precisamos exigir o imediato abandono das políticas neoliberais e que o governo faça a sua parte em sintonia com os anseios e necessidades da nação. Precisamos debater o presente e olhar com cuidado o que está por vir. O futuro está em disputa e nessa disputa certamente não cabe a ideia de Estado mínimo. Poderemos caminhar para uma ditadura subserviente a interesses antinacionais que mobilize a sociedade contra inimigos de ocasião ou para a construção de uma democracia soberana que abrace a ideia de economia inclusiva. Cabe a cada um de nós refletir sobre o que queremos e o que vamos ajudar a construir.

É preciso cuidar e cuidar de quem cuida. Somos a Asfoc-SN. Somos Fiocruz. Somos SUS.

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